domingo, 28 de agosto de 2011

Lobisomem





— Por um feliz acaso — continuou Niceros —, meu amo tinha ido a Cápua vender alguns ouropéis. Aproveitando-me dessa ocasião, persuadi nosso hospedeiro a me acompanhar até uma distância de cinco milhas dali. Ele era um soldado, bravo como Plutão. Pusemo-nos a caminho ao primeiro cantar do galo (a lua brilhava, e via-se tudo claro como em pleno meio-dia).
A um bom pedaço do caminho, achamo-nos entre túmulos. E, de repente, eis que meu homem se põe a conjurar os astros. Eu me sentei, cantarolei um pouco, e pus-me a contar as estrelas. Depois, voltando-me para meu acompanhante, vi que ele se despojava de todas as suas vestes, deitando-as à beira da estrada. Morto de medo, permaneci imóvel, como um cadáver. Imaginai meu pavor, então, quando ele se pôs a urinar ao redor de suas roupas, e no mesmo instante se transformou num lobo. Não penseis que estou brincando; eu não mentiria nem por todo o ouro do mundo.
Mas onde era que eu estava? Ah, sim. Quando se transformou em lobo, ele começou a uivar e logo fugiu para a floresta. A princípio, eu não sabia nem onde me encontrava. Depois, aproximei-me de suas vestes, para levá-las: haviam-se transformado em pedras. Se algum dia um homem esteve para morrer de medo, esse homem fui eu.
Contudo, tive a coragem de desembainhar minha espada e fender o ar com toda a força, para afastar os maus espíritos ao longo do caminho, até a casa de minha amante. Assim que transpus a soleira da casa, por pouco não entreguei a alma: um suor frio me escorria pêlos membros, meus olhos estavam mortos, e foi preciso um esforço desesperado para me fazer voltar a mim. Minha adorada Melissa não escondeu seu espanto ao me ver chegar a uma hora tão avançada.
"Se houvesse chegado mais cedo", disse-me, "poderias ter-nos prestado uma grande ajuda. Um lobo penetrou no cercado e matou todos os nossos porcos: foi uma verdadeira carni¬ficina. Entretanto, embora houvesse escapado, não teve tempo de comemorar seu feito, porque um de nossos criados lhe atravessou a lança na goela." Ouvindo isso, deixo a vós julgar se abri desmesuradamente os olhos. E, como o dia já vinha surgindo, corri depressa para nossa casa, como um mercador perseguido por ladrões.
Ao chegar ao local onde havia deixado as vestes transformadas em pedra, vi apenas sangue. Entrando em casa, encontrei meu soldado estendido no leito: sangrava como um boi, e um médico lhe passava ataduras em torno do pescoço. Reconheci, então, que ele era um lobisomem, e, a partir daquele dia, preferi morrer de pancadas a comer um pedaço de pão com ele.
Agora, deixo a quem não acreditar em mim a liberdade de pensar o que queira. Mas, se minto, que os génios que velam por vós me esmaguem com sua cólera!



Satiricon, Petrônio, Ed. Abril

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O Segredo do Boto

Márcio José Rodrigues – Laguna, SC

 
Uma canoa desgarrada descia a maré vazante em direção ao mar.

Sem um remador que a conduzisse, deslizava suave ao sabor da correnteza.

Levava bem acomodada no fundo, uma criança recém nascida, cuidadosamente enrolada em panos de algodão e pelúcia. O ruído das ondas agitadas pelo vento norte não deixariam que alguém pudesse ouvir o choro desesperado.

Não muito longe, no casebre do pescador Foguinho, a lamparina de querosene ainda não apagara a chama, mal iluminando a pequena peça da cozinha e projetando sombras contra as paredes toscas de tábuas. A corrente de ar filtrada pelas frestas fazia a chama dançar, mudando a tonalidade das imagens mal definidas dos rostos de um casal silencioso e taciturno, que teimava em permanecer fora da cama a horas tardias.

O silêncio desses dos dois personagens escondia um segredo terrível.

Na noite anterior a cena nesse mesmo local, tinha sido muito diferente e conturbada.

A mulher acabara de dar à luz, um menino.

O recém-nascido tinha cabelos negros como o alcatrão, os grandes olhos escuros, a pele morena.

Tudo estaria perfeito, não fossem certos detalhes.

Ora, o apelido que o homem carregava no lugar do nome de batismo, havia recebido pela cor de seus cabelos de fogo, a pele avermelhada salpicada de sardas. A mulher possuía os cabelos ainda mais ruivos. Os filhos, dois pirralhos espertos, tinham bem saído aos pais, com os mesmos cabelos de ferrugem, as mesmas sardas e os olhos mais azuis que o céu do mês de maio.

Não tivesse o próprio pai assistido o parto, cortado ele mesmo o cordão do umbigo a bem medidos cinco dedos de espaço e o amarrado com linha de pesca, diria que o menino teria sido trocado, como coisa de um sortilégio ou feitiço.

– Este menino não parece meu filho!… balbuciou sem jeito.

A mãe nada contestou. Instintivamente, num gesto tão inesperado quanto estranho, estreitou a criança contra o peito, encolhendo-se sobre ela, como a protegê-la de uma já prevista agressão.

O homem implorou por uma explicação.

A mulher encolheu-se ainda mais.

O silêncio constrangedor só fez envenená-lo em suas dúvidas.

A cabeça latejava. O coração ferido ante a expectativa de uma traição, batia desencontrado. Sentimentos de raiva cambiavam com os de tristeza e decepção, enquanto ondas de ciúme e decepção alimentavam uma angústia opressora.

Da mulher não arrancou nenhuma confissão , mesmo diante da faca ainda suja com o sangue do trabalho de parto. A mente do pescador triturava os pensamentos, torturando-o com suspeitas que nenhum homem poderia suportar. Depois ainda viria a humilhação perante os vizinhos e companheiros, o riso disfarçado e a pilhéria no balcão da venda.

Ante o desvairio do homem e uma sombria ameaça contra as crianças, a mulher cedeu.

Mesmo inconsolável, aceitou levar a cabo um plano macabro.

No dia seguinte, entre rezas e lamúrias das velhas carpideiras, uma caixinha com areia foi conduzida ao cemitério da aldeia, simulando o enterro de um natimorto, as crianças levando raminhos de flores do campo.

Passaram-se estações, sucederam-se as temporadas e a faina sem fim das lidas da pesca, mas as noites do casal seriam sempre povoadas de pesadelos.

O remorso é uma dor que só se cura quando a pessoa perdoa a si mesma.

Nos piores momentos, muitas lágrimas para a mulher.

Para o homem, a cachaça.

Alguns anos depois, quando os meninos já eram quase homens feitos, apareceu no pesqueiro, um jovem moreno e forte.

Não possuía canoa nem pertences e ninguém se lembrava já tê-lo visto em um lugar qualquer.

Pescava com habilidade notável e onde andava por aquela barra de rio, sempre havia um grupo de botos por perto. Coisas estranhas que rondavam o jovem pescador levavam a crer que os botos o conheciam e que parecia dirigir-se a eles por meio de sons ininteligíveis.

Por onde pescava sempre havia botos - e tainhas em abundância.

Solitário, só não se esquivava da aproximação dos filhos de Foguinho, que sempre saíam de balaio cheio, enquanto as tarrafas dos outros voltavam vazias.

Ninguém sabia onde dormia ou onde morava. Desaparecia com o anoitecer e se antecipava a todos ao nascer do sol.

A única casa de que se permitia aproximar era a desse pescador.

A mulher costumava observá-lo sem o entender, mas com um sentimento de inexplicáveis ternura e compaixão. Ela já havia percebido em seus olhos, um triste ar de abandono e súplica quando a envolviam com inocência e lhe faziam aflorar sentimentos de mal disfarçada ternura.

Não foi uma vez só, que a quase certeza materna, parecia dizer-lhe que conhecia aquele moço.

Lá fora povo dizia:

– Ele é filho do boto!

E daí, a figura foi se envolvendo cada vez mais em brumas de mistério, até que virasse uma espécie de lenda viva, enriquecida aqui e ali com recortes de imaginação nas rodas de cachaça.

As moças do local espalhavam histórias de um olhar poderoso e irresistível que as deixava enfeitiçadas. Não tardaram a identificá-lo como um mau espírito ou demônio desses povoados açorianos, e logo passou a representar o perigo, o mal personificado saído das artimanhas de alguma bruxa.

E assim, foi:

Um grupo de homens, na calada de uma noite escura, atacou-o de surpresa.

Os demais moradores da aldeia estranharam o súbito desaparecimento, mas acabaram aceitando que ele tivesse ido embora tão misteriosamente quanto havia aparecido um dia.

Só a mulher de Foguinho saía a procurá-lo, mas em suas buscas só encontrou dor de saudade, um sentimento amargo de culpa, que não passaria nunca.

Aquele macabro segredo morreu com aquela gente,

O tempo leva todas as coisas.

Todos eles se foram também.

Só os botos ficaram.

Desde aqueles tempos, nunca mais abandonaram esses lugares e ainda hoje cercam as tainhas para os pescadores de tarrafa do pontal da barra.



terça-feira, 23 de agosto de 2011

Às margens do igarapé




Foi numa noite de festa

que seus olhos se cruzaram

quando a Lua ia alta

a dançar se aproximaram

Ele, alegre e bem gentil

Ela, riso juvenil

e logo se apaixonaram



Brincaram a noite inteira,

ela de saia florida,

ele com seu chapéu branco

Com ternura desmedida,

abraços e cafuné

perto do igarapé

até esquecer da vida...



Antes do amanhecer

revela-se o ignoto

segredo particular:

pula nas águas o boto

Mas sempre retornará

e de novo a amará –

ficou o amor em broto.

 


Clarice Villac

22.08.2007





domingo, 21 de agosto de 2011

Tangolomango


Eram oito formiguinhas
morando num tagete
Deu tangolomango numa
e das oito ficaram sete.


Das sete que restaram
Uma se afogou no orvalho
Outra partiu com um bem-te-vi e
 ficaram cinco que eu vi.

Dessas cinco que restaram
Uma tropeçou num pato
e das cinco ficaram quatro.

Das quatro que ficaram
Uma foi imitar o cabrito montês
Quebrou o pescoço, meu bem,
e das quatro ficaram três.

Destas três que restaram
Uma foi passear na lua
Deu o tangolomango nela
e eis que ficaram duas.


Destas duas que ficaram
Uma resvalou na espuma
e restou apenas uma.

Esta uma que ficou f
oi jogar paciência
Deu tangolomango nela
e acabou-se a descendência.



sábado, 20 de agosto de 2011

A lenda do Mau Agouro




O POVO ACREDITA que se uma pessoa falando constantemente uma palavra infeliz, atrai as energias negativas. As palavras ditas geralmente são: desgraça, maldito, inferno e outras mais.

No Bairro de São Francisco, existia um homem chamado Zé Bastos que constantemente praguejava. Era um pescador muito corajoso que não tinha medo de nada. Toda madrugada era chamado pelo seu amigo Constantino para pescar.

Constantino todo dia chamava os pescadores, de casa em casa, para saírem para o mar. Certa noite de lua cheia, indo chamar Zé Bastos, que era mestre de rede, apareceu a sua frente um homem estranho. Por mais que Constantino andasse para alcançar o homem todo vestido de preto, a mesma distância continuava entre os dois. Estranho!

Saindo da rua principal, dobrando a esquina, o homem de preto ia na mesma direção de Constantino... estavam na rua do Fogo, perto da casa do Zé Bastos.

Quando Constantino chegou na frente da casa do amigo, a figura humana desapareceu. Melhor assim.

Zé Bastos gostava de ser chamado delicadamente, assim não perdia o bom humor. Sabendo idsso, Constantino olhou por um buraco na parede de barro, para chamá-lo, em voz baixa.

Meu Deus! O que é isso?

No quarto do Zé Bastos, estava o homem de negro com os dedos nos orifícios de seu nariz: parecia estar sufocando-o. Assustado, Constantino chamou o amigo aos gritos. Zé Bastos deu um pulo da cama, preparado para briga, meio acordado, não entendendo nada. O homem de negro sumira.

CONTAM QUE o homem de negro nada mais era do que a "desgraça" que tinha vindo buscar Zé Bastos, pois vivia chamando-a para levá-lo para o outro mundo. Nesta noite, veio buscá-lo para a morte, mas ele foi salvo pelo amigo Constantino.

Zé Bastos nunca mais praguejou.



VIVIANE, Patrícia (org.). Mitos e lendas de São Sebastião. il. Marcelo Brossler Toledo. 3.ed. São Sebastião SP : Secretaria de Cultura e Turismo, 1996. p. 13.


Colaboração: Rosângela Pereira, coordenadora da Escola Municipal Guiomar Aparecida da Conceição Souza, em Boiçucanga, litoral norte de São Paulo.



A Noite do lobisomem


Festa no arraial. Osvaldo, vaqueiro metido a valente, animado, e assim falou com a mulher:

_Maria, aprepara as coisa que precisa, a modi nós ir na quermesse.

_Ce tá doido home! Fora do juízo? Noite de lua cheia! Cê sabe dos boato. Sturdia memo foi os leitão do cumpadi Toizinho...

_Bobage, Maria! Vai falá que ocê aquerdita nessa história de lobisome?

_Querdito sim, home. O povo aumenta, mas num inventa!

_Mais!... lobisome comigo, se é que existe, eu pego ele pras oreia e chuto a bunda dele!

_Credo in cruz, co'essas coisa num se brinca Osvardo!

— Muié, o bão de noite de lua-cheia é que os caminho tá claro, dá pra ir, divirti e dispois vortá tronqüilo.

E tanto insistiu o Osvaldo, que Maria acabou cedendo. Criança no colo, coração apertado, pé na estrada... lá se foi ela junto do marido.

E na festa, vixe! esse Osvaldo divertiu. Dançou catira, cantou moda-de-viola e comeu! Ah! Osvaldo se empanturrou: quentão, cocada, quebra-queixo, canjicada, tudo que tinha direito o Osvaldo experimentou, usou, abusou, deitou e rolou...

Maria, menino nos braços, já cansada:

_Osvardo, óia a hora, home! Ocê sabe dos boato, vamo antes das hora morta,

_Osvardo!

E o Osvaldo ligou? Nem aí! Bebeu, cantou, dançou e comeu que nem um padre.

Já era mais de onze da noite, quando o Osvaldo resolveu ir embora com a pobre da Maria. E ela, coitada! Era purinho medo! Medo de Lobisome. Criança no colo, mão no terço, coração e passo apertados. O Osvaldo, ainda animado, foi junto, cantando estrada afora.

Num determinado ponto do caminho, ele parou. Maria, aflita:

— Num pára, não home de Deus! Óia as hora morta, Osvardo!

Mas, o Osvaldo, clamando dor de barriga, falou pra Maria que esperasse um pouco, que ele ia no mato. E foi...

Maria ali ficou, criança no colo, terço na mão, tremendo que nem corda de violão velho. E o Osvaldo, no mato... demora e demora... Maria, cada vez mais tremendo de medo.

De repente, um barulho no mato. Seu corpo todo se arrepiou.

_Osvardo!

De novo, o barulho e um bufado:

_Osvardo?

Mais uma vez, o barulho, o bufado. E, agora, um uivo.

— Osvardo!!

E, então, aquela coisa medonha veio pra cima de Maria:

_Osvardo, o lobisome! Osvardoooooooooo!

E Maria, criança no colo, terço na mão, coração disparado, atravessou o outro lado da estrada e correu pasto afora. Na nuca o bafo da fera! Maria corria... corria... No caminho, um barranco! Maria subiu o barranco... E o bicho, atrás, roncando. Maria saltou o ribeirão, o bicho, atrás, babando. E Maria gritava:

_Osvardo! O Lobisome, Osvardo!

Maria vazou por uma cerca de arame farpado, a fera, atrás cercando. Por fim, Maria, criança no colo, terço na mão, subiu num coqueiro. O lobisome, atrás, bufando, babando e pulando. E mais uma vez, Maria gritou:

_Osvardo!

E ele? Nada!

Enquanto isso, debaixo do coqueiro, o lobisome tentava subir. Tentou uma... duas... três... Não conseguiu! Então, foi até a uma pedra que tinha por perto e começou a amolar suas garras. E bufando, tentou de novo. Maria, lá de cima, viu que aquela coisa danada conseguia, agora, chegar até a metade do tronco do coqueiro. Então, o lobisome deslizou e caiu lá embaixo. Novamente amolou suas garras na pedra. Pulou, bufando e roncando! Dessa vez, conseguiu chegar mais perto da pobre mulher. Deslizou de novo até chegar ao chão. E, outra vez, foi até a pedra. Amolou suas garras. E, de novo, tomou impulso... Agora, pulou, bufando roncando e babando, Maria sentiu aquele bafo e o bicho bem perto. Maria viu a enorme boca, buscando a criança. E a fera mordeu, Maria gritou, não pelo Osvaldo, mas pelo Divino Pai Eterno. E o lobisome caiu, levando na boca um pedaço da manta que envolvia o bebê. Maria, criança chorando no colo, terço na mão, coração quase pulando fora do peito, rezava, rezava... Em baixo, o lobisome: bufando, roncando, babando e esperando que Maria cansasse e descesse. Mas Maria ficou firme.

Madrugada se foi... O Lobisome já tinha ido embora. Ela sabia: Lobisome não tolera a luz do dia... Então, desceu do coqueiro. No seu colo, o menino dormia tranqüilo. A pobre mulher tomou o rumo de casa. Lá chegando, encontrou o Osvaldo, na cama, dormindo. Roncava que nem um porco. "Na hora do Lobisome, ocê mostrou que é memo um cagão" — pensava ela. E chegando mais perto, de repente, gritou:

_Osvardo!

Ele roncava de boca aberta e Maria acabava de perceber que, por entre seus dentes, estava preso um fiapo de coberta, a coberta que enrolava seu bebê na hora em que o lobisome atacou...

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Boi Bumbá


 Letra e Música de Waldemar Henrique
 do ciclo de Canções Amazônicas



Ele não sabe que seu dia é hoje

Ele não sabe que seu dia é hoje

Ele não sabe que seu dia é hoje

Ele não sabe que seu dia é hoje



O céu forrado de veludo azul-marinho

Venho ver devagarinho

Onde o boi ia dançar

Ele pediu pra não fazer muito ruído

Que o santinho distraído

Foi dormir sem celebrar



E vem de longe o eco surdo do bumbá sambando

A noite inteira encurralado batucando

Bumba meu boi do campo

Bumba me boi bumbá



La liá liá liá

E sabiá da mata cantador

La liá liá liá liá liá

E o sabiá da mata sofredor

Irerê meu passarinho no sertão do Cariri

Irerê meu companheiro

Cadê viola?

Cadê meu bem?

Cadê Maria?



A Estrela Dalva lá no céu já vem surgindo

Acordou quem tá dormindo

Para ouvir galo cantar

Na minha rua resta cinza da fogueira

Que passou a noite inteira

Fagulhando para o ar



E vem de longe o eco surdo do bumbá sambando

A noite inteira encurralado batucando...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Uma história de Saci





Todo o pessoal da floresta tem bronca do Saci. É que ele vive aprontando com os outros, como a gente sabe. É levado mesmo.

Um dia deu um nó no rabo da onça.

Outro dia passou batom vermelho na bocona do jacaré. E pra tirar foi um sufoco

danado! Só dava aquela bocarra vermelha, com tanto dente branco dentro.

Na mesma semana, o danado do Saci passou cola num galho de árvore e uma coruja ficou lá grudada! Parece que ele já acordava com uma idéia de aprontar na cabeça.

Mas, um belo dia, chegou a hora do troco. O Saci-Pererê recebeu uma carta. Era um convite para ser entrevistado no programa do Jô Soares, em São Paulo.

Ele ficou todo orgulhoso, claro!

Seria o representante do folclore brasileiro, falando para o País inteiro, via satélite. Então, ele pensou em colocar uma roupa bem bonita e também um

sapato chique, de verniz preto. Até comprou um gorro vermelho novo.

No grande dia, ele se vestiu, passou perfume... Mas aí chegou a hora de

colocar o sapato! Não tinha jeito. Todo mundo coloca o sapato ficando em pé na outra perna. Mas o Saci só tem uma perna, ora!

Daí, pediu ajuda para a onça. Ela, é claro, deu a maior gargalhada!

– Agora você vai ver que onça é pior que amigo da onça, seu bobão! – disse a

pintada.

Então o Saci foi pedir uma mãozinha para o jacaré.

– Quiá, quiá, quiá! – riu o bicho com seu bocão cheio de dentes. – Se depender

de mim, você vai descalço mesmo!

E o Saci tentou de novo:

– Ô dona Coruja, me ajuda a calçar este sapato, vai! É só unzinho.

A coruja pensou e respondeu que só ia ajudar se o Saci prometesse não aprontar mais com ninguém. Ele já estava ficando atrasado pra sair. Desse jeito ia atrasar mais ainda o programa que já é atrasado sempre!

_Olha aqui, dona Coruja, eu vou dizer uma coisa pra senhora. Se eu ficar bonzinho e comportado, ninguém vai me reconhecer. A senhora vai acabar

com o folclore, sabia?

E era verdade. Saci-Pererê é Saci-Pererê!

Então a coruja, muito sábia, ajudou e, de sapato e cheiroso, o Saci se mandou.

Mas a verdade é que, com a coruja, ele nunca mais aprontou

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Passando a perna no Saci




Conta-se que numa noite, há muito tempo atrás, em que outros homens se divertiam, depois do trabalho, um deles, chamado Felício, resolveu dar umas voltar e apreciar o luar. Sentou-se num grosso tronco de ipê, a beira do riacho e começou a admirar a lua cheia no céu. Foi quando ouviu uma vozinha:

- Moço, o que faz aí?.

Pensando que fosse um de seus amigos, virou-se para responder, quando deu com o Saci. Ele lhe sorria segurando um cachimbinho vazio.

Felício, ficou branco, depois verde, um arco-íris de cores, tamanho foi seu susto. Quis gritar, mas sua voz sumiu por encanto, ou medo mesmo. O Saci chegou mais perto e disse:

- "Não tenha medo, meu amigo. Só quero saber o que está fazendo tão longe de casa?

Felício explicou então que trabalhava com madeiras e foi contando sua história... No final o Saci deu uma grande risada e disse:

- "Madeira, não é mesmo? Pois é justamente o que eu estava procurando..."

- "Mas para que?" Pergunta Felício.

- "Olhe, pois vou lhe confessar uma coisa, as vezes tenho muita vontade de ser como as outras pessoas e ter duas pernas, entende?

- "Ah!". Respondeu, compreendendo a intenção do Saci. "Você quer que eu lhe faça uma perna de pau, não é mesmo?"

- "Pois é isso mesmo e te darei três dias para que esteja pronta, senão não darei sossego a você e seus companheiros!" Em seguida saiu pulando e sumiu no meio do mato.

Felício voltou ao seu barracão e contou aos companheiros o acontecido. Uns acreditaram ,outros acharam que tinha bebido demais.. Até que Felício acabou esquecendo o caso. No terceiro dia, conforme prometido, quando os homens estavam em pleno trabalho, eis que um menino de gorro vermelho surgi à porta do barracão. Quando deram com ele..vocês nem podem imaginar..uns empurravam os outros, caiam, levantavam-se e acabaram saindo todos pela abertura da janela. Apenas Felício ficou lá, estarrecido! Daí perguntou:

- "O que você quer?"

- "Ora, ora. Então não sabe? Vim buscar minha perna de pau, lembra-se? Não vá dizer que ainda não está pronta?"

Felício gaguejou, atrapalhou-se todo até que consegui dizer que ainda não estava pronta. O Saci xingou, esbravejou, mas acabou indo embora com a promessa que tudo estaria pronto dentro de mais três dias.

Felício saiu atrás dos homens. Gritou um tempão até conseguir reunir todos. Eles não queriam ficar mais no barracão. Não queriam nada com o Saci. Ajudar a fazer a perna dele? Nem sonhando! Mas acabaram concordando, pois era a única maneira de se livrar do diabinho.

Trabalharam com afinco. No dia marcado, o Saci voltou e ficou muito contente. Todos suspiraram aliviados. Mas pensam que a estória acaba assim? Que nada! Ele falou que desejava uma perna para cada Saci de sua família. Não esperou resposta, deu um assobio e logo o barracão ficou cheio de sacis. É claro que Felício ficou sozinho! Não vendo outra saída, ele concordou em fazer as pernas de pau, mas ia levar anos. Quis saber então quais os Sacis que iam ser atendidos primeiro. Aí sim o tumulto foi grande, ninguém queria ser o último.

Foi quando Felício teve uma idéia. Ele viu uma enorme arca que haviam trazido para deixar no rancho e mentalmente resolveu a situação.

Dirigiu-se ao Saci-chefe:

- "O melhor modo de resolver quais serão os primeiros é este..." Pegou um punhado de feijão e esparramou no fundo da arca. Depois disse que quem pegasse mais grãos seriam os primeiros. Todos os Sacis concordaram e mergulharam na arca. Mas Felício havia esquecido do Saci-chefe. Foi quando então tirou-lhe da mão a perna de pau e atirou-a dentro da arca. O Saci nem piscou e também se jogou dentro da arca. O Felício então fechou-a. Chamou os homens e levaram a arca o mais longe possível. Desde então nenhum Saci apareceu mais por aquelas bandas.

Foi assim que Felício passou a perna no saci pererê.

 

sábado, 13 de agosto de 2011

A serra do rola-moça





Mário de Andrade

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...


Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.


Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E se puserem de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.


Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.


As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.


Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos,
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.



Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz ...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.


E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.

 

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A Pulseira da Rainha



Essa história vem de muito longe. De uma aldeia lá pros lados da África. Lá havia o rei Quitamba, que vivia numa alegria danada. Todo dia ele dava festas na aldeia. Aquela alegria foi durando, durando, durando... Até o dia em que a sua mulher, a rainha, morreu. No dia em que isso aconteceu, o rei caiu numa tristeza danada. Foi uma tristeza tão grande que ele baixou um luto lá na aldeia. A partir daquele dia, ninguém poderia cantar, correr, moer farinha, casar, nada! Tinha que ficar todo mundo caladinho. O tempo foi passando e a aldeia naquele luto pesado; num silêncio total. Porém, um dia os homens da aldeia resolveram se reunir para conversar com o rei e tentar assuntar; inventar alguma coisa para acabar com a tristeza.

Foi quando o rei Quitamba falou:

- Eu só acabo com esse luto se vocês ressuscitarem a rainha!

Os homens abaixaram a cabeça pensando em como ressuscitar uma morta. Foi quando tiveram uma idéia. Perto da aldeia havia um feiticeiro. Eles mandaram presentes para o feiticeiro e o convidaram para vir até a aldeia. Mataram uma vaca, fizeram uma comida muito boa e deram para o convidado. Quando esse estava bem alegre, eles lhe contaram toda a história. Falaram que precisavam da ajuda do feiticeiro para ressuscitar a rainha.

O feiticeiro disse que ajudaria aqueles homens. Foi ao mato, colheu uma porção de ervas, entregou para cada um e disse:

- Vocês vão levar essa raiz, dar para o rei e falar que todos os dias ele terá que tomar banho com ela.

Após falar isso, o feiticeiro disse que acenderia uma fogueira e que no local do fogo, era para os homens cavarem uma cova. Assim foi feito. O feiticeiro chamou sua mulher e disse:

- Agora, eu vou entrar com meu filho nessa cova. Depois que eu entrar você tampa e vai regando com água todos os dias. Passou a mão no menino e foi entrando para dentro da cova. A mulher fechou o buraco. Eles andaram, andaram e chegaram numa aldeia. Era a aldeia de Calunga. Nisso eles viram a rainha, que estava sentada. Ela ficou assustada e perguntou:

De onde vocês vieram? O que estão fazendo aqui?

O feiticeiro, então, contou tudo o que se passara na aldeia.

A rainha, apontando para um lado disse:

-Você está vendo aquele ali? Ele é o Calunga. É ele que toma conta de nós aqui. Depois que se entra aqui ninguém mais sai!

Em seguida, a rainha apontou para o outro lado e disse:

- Agora você esta vendo aquele ali?

O feiticeiro olhou, olhou e reconheceu, dizendo:

- Aquele é o rei Quitamba!

A rainha explicou que aquele não era o rei, mas sim sua imagem, pois esse não viveria por muito tempo, indo, em alguns anos, ficar com ela naquele lugar.

A rainha disse ao feiticeiro:

- Você volta para o reino, conta ao rei Quitamba toda essa história.

E para certificar o rei de que o feiticeiro estava falando a verdade, a rainha lhe entregou uma pulseira com a qual havia sido enterrada.

Eles se despediram e o feiticeiro foi embora levando a pulseira.

Do lado de fora, no mundo dos vivos, a mulher do feiticeiro passou dias a regar a cova. Foi quando ela viu a terra rachando e a cabeça do seu marido e seu filho aparecerem em meio à terra. Ela puxou os dois para fora.

No outro dia, o feiticeiro reuniu novamente os homens, entregou a pulseira da rainha e mandou que eles a levassem ao rei. Assim foi feito. O rei, ao ouvir toda aquela história, ficou um pouco desconfiado. Mas, quando viu a pulseira constatou que era tudo verdade. A partir daquele dia a tristeza foi acabando porque o rei tinha agora a certeza de que um dia iria reencontrar sua rainha. Novas festas voltaram a acontecer e a alegria tomou conta do reino novamente. Porém, chegou o dia em que o rei teve que ir para a terra de Calunga. E dizem que ele está lá até hoje, alegre, ao lado da sua rainha!

(História gravada por Ana Paulo Oliveira, contada por Josiley Souza, em Belo Horizonte)

*O título dessa história não corresponde ao verdadeiro



sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Maria Vai com as Outras

                                                                                                                                            
                                                                                                                                               Sylvia Orthof

Era uma vez uma ovelha chamada Maria. Onde as outras ovelhas iam, Maria ia também. As ovelhas iam para baixo Maria ia também. As ovelhas iam para cima, Maria ia também.

Um dia, todas as ovelhas foram para o Pólo Sul. Maria foi também. E atchim! Maria ia sempre com as outras.

Depois todas as ovelhas foram para o deserto. Maria foi também.

- Ai que lugar quente! As ovelhas tiveram insolação. Maria teve insolação também. Uf! Uf! Puf!

Maria ia sempre com as outras.

Um dia, todas as ovelhas resolveram comer salada de jiló.

Maria detestava jiló. Mas, como todas as ovelhas comiam jiló, Maria comia também. Que horror!

Foi quando de repente, Maria pensou:

“Se eu não gosto de jiló, por que é que eu tenho que comer salada de jiló?”

Maria pensou, suspirou, mas continuou fazendo o que as outras faziam.

Até que as ovelhas resolveram pular do alto do Corcovado pra dentro da lagoa. Todas as ovelhas pularam.

Pulava uma ovelha, não caía na lagoa, caía na pedra, quebrava o pé e chorava: mé! Pulava outra ovelha, não caía na lagoa, caía na pedra e chorava: mé!

E assim quarenta duas ovelhas pularam, quebraram o pé, chorando mé, mé, mé! Chegou a vez de Maria pular. Ela deu uma requebrada, entrou num restaurante comeu, uma feijoada.Agora, mé, Maria vai para onde caminha seu pé.