Todo ano era a mesma coisa: Carlinhos pedia de Natal o videogame
mais novo que existisse e acabava ganhado de tudo, menos o videogame. E ele
sabia bem de quem era a culpa. Não de Papai Noel, pois desde que vira os pais
escondendo alguns embrulhos atrás do volumoso armário colonial da sala de
visitas, não acreditava mais no velhinho de vermelho. A culpa era daquela
amiga pedagoga que insistia em dizer que videogames eram prejudiciais e que
as crianças deveriam receber somente livros e brinquedos tradicionais. E dos
pais por aceitar tais conselhos.
Era tão injusto; a irmãzinha, Maria sempre conseguia o que queria. Escrevia as cartas que colocava no correio junto com a mãe (que fazia tanta questão de dizer que não ele não deveria mentir. Mas o que era aquilo então? Verdade é que não!) e no natal recebia exatamente o que pedira: bonecas de todas as formas e cores. Nada de brinquedos educacionais. Certa feita, resolvera confrontar os pais. Os dois, primeiro tentaram insistir na “Teoria do velhinho de vermelho”, coisa que ele rechaçou de maneira definitiva. Depois, bancaram os desentendidos. Juravam que haviam comprado videogames, como havia sido requisitado e não entendiam o que havia dado errado. Aquela desculpa estava tão bem ensaiada, que o pai culpava a mãe e a mãe culpava o pai. Ao completar onze anos de idade, acreditando já ser definitivamente gente, chamou-os e disse de maneira bem clara: ou naquele natal ganhava o videogame ou não iria de forma alguma à festa de natal na casa da Vó Ana. Pior, se fosse não tomaria banho. Pior, ficaria dias, semanas, meses sem tomar banho. E, não contente, enfiaria o dedo no nariz e o limparia na bandeja de farofa, bem na frente da tia-avó Nilza, aquela com mania de limpeza que irritava todo mundo. Depois daria uns cascudos no primo Wilsinho, que era muito chato e chorão e levaria uma tesoura bem afiada para cortar um dos cachos dourados da prima Elisa, que todo mundo tanto adorava. E acordaria mais cedo do que todo mundo para espalhar o jornal diário pelos outros apartamentos. E... Tanto ameaçou, tanto prometeu fazer que não houve remédio. Os pais o levaram para a loja, compraram o videogame, embrulharam e na frente dele, esconderam atrás do volumoso armário colonial da sala de visitas. Mas a mãe deixou bem claro: só ganharia o presente na noite de natal e se, por causa dele, Mariazinha desconfiasse da inexistência do velhinho de vermelho, ele ganharia os presentes dela e ela, o videogame. Isso, não queria, pois havia visto o tipo de presentes educativos Mariazinha ganharia. Naquele ano, nada de bonecas. Estava tão feliz, que até ajudou Mariazinha a escrever a carta para o Noel. E para se garantir e ajudar a aumentar a farsa, ele mesmo escreveu uma carta. Não resistiu e fez uma lista daqueles presentes que não queria ganhar. Rindo-se muito, colocou as duas cartas no correio e esperou com ansiedade da noite de natal. Quando voltaram da festa na casa da Vó Ana, estava tão excitado que não conseguia dormir. Havia tomado escondido, duas taças de vinho, o que considerou justo, pois considerava um adulto, alguém que conseguisse convencer outro adulto de alguma coisa. A casa estava silenciosa e escura. Levantou-se e ficou andando, louco para jogar videogame. Viu-se levado para a sala de visita, onde ficava montada a árvore de natal e o presépio. Uma corrente fria vinda da janela aberta o alarmou. Foi quando viu um vulto de um velhinho vermelho saltando pela janela para um trenó que flutuava no ar, levando os presentes que os pais compraram e deixando no lugar as bonecas e os presentes que ele e Mariazinha haviam pedido nas cartas e resmungando: - Esses pais modernos, além de se intrometerem no meu trabalho, ainda fazem mal feito...
Fonte: Instituto Cultural Aletria
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terça-feira, 30 de dezembro de 2014
O menino que não acreditava no Senhor Noel
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
Bentevi
Só
sabe dizer o seu nome malicioso para avisar que alguém se aproxima dele. O
bem-te-vi pequeno (Pitangus lictor) também possui mania idêntica. Nosso
Senhor Jesus Cristo não gostava deles. Tanto gritaram bem-te-vi, que os
soldados do rei Herodes iam descobrindo o esconderijo onde Nossa Senhora se
abrigava durante a fuga para o Egito. O bem-te-vi anuncia visitas. Pergunta-se:
Quem tu viste, bem-te-vi? Homem ou mulher? Se o pássaro canta
imediatamente, é homem e, se demorar, é mulher.
Ai, meu passarinho verde
Ai, meu lindo bem-te-vi
Eu já sei que vai cantar
E por isso eu fico aqui
Cala a boca, passarinho
Cala a boca, bem-te-vi
Não me faça recordar
Dum amor que já perdi
Fuga para ao Egito
FUGA PARA O EGITO
Assim
que o Menino Jesus nasceu, a Virgem Maria resolveu fugir pra bem longe, onde
ninguém pudesse maltratar seu filho. Mas, por todos os lugares por onde ela
entendia de passar, só encontrava soldados, que estavam em sua perseguição. É
que tinha um feiticeiro com muito ciúme do Menino Jesus, contando pro rei
Herodes todos os lugares por onde ela imaginava passar. Por causa disso, todos
os feiticeiros são amaldiçoados.
A
Virgem foi indo, se escondendo, até que chegou numa ponte. Mas a ponte estava
guardada por quatorze soldados: seis na entrada, seis na saída e, bem no meio
dela, dois. E acontece que não tinha outro caminho e, por isso, a Santa Virgem
começou a chorar e a clamar. De repente, ela olhou assim prum lado da estrada e
viu uma velhinha de cocre numa moita, fazendo caretas pra ela e chamando ela
pra mais perto. Nossa Senhora perguntou:
-
Que é que você quer, minha boa velhinha?
-
Quero ver o que a senhora vai levando aí no colo – respondeu a velha.
Nossa
Senhora pegou e mostrou o menino. Quando a velhinha viu a criança mais linda
deste mundo, ficou admirada e disse:
-
Parece uma flor; então, como flor há de passar essa ponte.
Ela
arrumou um avental, colocou o menininho bem no fundo e cobriu tudo com ervas
virtuosas. As ervas se transformaram em flores , quando os soldados foram
revistar o avental, só encontraram flores.
Foi
assim que o Menino Deus escapou do malvado rei Herodes, foi crescer no mato no
meio dos bichos e das plantas, e que as feiticeiras, por piores que sejam, no
fim sempre têm salvação.
(Estórias
de Nosso Senhor Jesus Cristo colhidas no estado de São Paulo, por Oswaldo Elias
Xidieh. Narrativas populares; estórias de Nosso Senhor Jesus Cristo e mais São
Pedro andando pelo mundo.)
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
O Poeta
(Manoel de
Barros)
Vão dizer que não existo propriamente dito
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação para ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou é zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir suas irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.
Vão dizer que não existo propriamente dito
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação para ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou é zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir suas irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.
sexta-feira, 4 de julho de 2014
O jabuti e o chacal
A filha de um famoso rei era tão bonita que
muitos habitantes da região queriam se casar com ela. Dia e noite chegavam
pretendentes de terras distantes carregados dos mais belos presentes para a
linda moça. Mas o pai tinha resolvido que só daria a filha em casamento àquele
que suportasse bravamente os mais difíceis desafios.
Depois
de vários meses de disputa, foram selecionados para a prova final o Jabuti e o
Chacal.
O
rei já não sabia que tarefa escolher para eles, quando o Jabuli, pedindo
licença, disse que tinha uma sugestão:
-
Para saber qual de nós dois é o mais corajoso, vamos ver quem consegue comer a
papa de milho mais quente.
O
rei gostou da ideia e o Chacal, meio desconfiado, acabou concordando também.
No dia
seguinte, desde as primeiras horas da manhã, os aldeões com as mulheres e
crianças já estavam sentados no chão formando um grande círculo no largo da
aldeia para assistir a ultima prova. Logo que o rei, acompanhado da esposa e da
filha, usando seus melhores e mais coloridos trajes, tomaram seus lugares,
protegidos do sol por uma majestosa árvore, a multidão, inquieta, começou a
gritar para que a disputa começasse. No meio do alarido ouviam-se as vozes dos homens fazendo apostas, alguns no Jabuti, outros no Chacal.
Finalmente,
chegou o grande momento. Os dois candidatos avançaram em direção ao rei. Este
levantou-se e pedindo silêncio, perguntou:
- Qual
de vocês quer ser o primeiro?
O
Jabuti. dando um passo à frente. respondeu rapidamente: - Eu quero começar,
majestade!
O
Chacal suspirou aliviado. pois não desejava ser o primeiro mesmo.
As
atenções se voltaram então para o cozinheiro da aldeia, que desde a noite
anterior havia deixado um enorme caldeirão de mingau de milho fervendo numa
fogueira armada no centro do pátio. Ele pegou uma concha de madeira, muito
comprida, e a mergulhou no caldeirão que soltava fumaças de tão quente. O
cozinheiro retirou a concha. encheu uma tigela de barro e passou-a para o
Jabuti.
Este
pegou o recipiente com muito cuidado e disse:
- Para
que todos aqui não duvidem da minha coragem, vou passar a tigela na frente de
cada um de vocês para que verifiquem com seus próprios olhos como esta papa de
milho está fervendo. E, lentamente. mostrou a fumegante tigela: inicialmente
para o rei. a rainha e a filha. depois deu uma volta completa no círculo
humano, fazendo a mesma coisa com a multidão reunida ali. Quando terminou o
passeio, o mingau já estava praticamente morno e não teve problema nenhum para engoli-lo
de uma vez só, em meio aos aplausos do público.
-
Chacal - disse o rei - agora é você.
O
rival carniceiro tremia tanto que, ao receber a tigela escaldante, deixou-a
cair no chão queimando os pés. Não aguentando a dor fugiu pulando numa perna
só. vaiado estrepitosamente pelos aldeões.
E
assim o Jabuti casou com a filha do rei.
(Bichos da África 4, Rogério Andrade Barbosa)
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
9°Encontro Regional de Contadores de Histórias
Para quem gosta de histórias acontece em março, do dia 10 a 16, em Santa Bárbara d'Oeste, SP, o
9º Encontra Conto - Encontro Regional de Contadores de Histórias.
Informações e inscrições: www.encontraconto.blogspot.com
Projeto
realizado com apoio do Governo do Estado de São Paulo
Secretaria
de Estado da Cultura – Programa de Ação Cultural - 2013
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014
Ah, Cambaxirra, se eu pudesse...
Era uma vez uma cambaxirra, toda saltitante e alegre que estava fazendo ninho na árvore de galho mais bonito da floresta.
Um dia, viu um lenhador se preparando para derrubar a árvore. Começou a voar em volta e a cantar muito agitada. O lenhador perguntou:
- Cambaxirra, que foi que houve?
E ela disse:
- É que você vai derrubar a árvore de galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho.
Não faz isso, por favor.
E o lenhador respondeu:
- Ah cambaxirra, se eu pudesse...
Mas não é comigo. Estou só cumprindo ordens.
- De quem?
- Do capataz. E morro de medo dele.
Então a cambaxirra voou até a casa do capataz e pediu:
- Capataz, por favor, não dê ordem ao lenhador para derrubar a árvore do galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho.
E o capataz respondeu:
- Ah cambaxirra, se eu pudesse...
Mas não é comigo. Estou só cumprindo ordens.
- De quem?
- Do barão, que é o dono da terra e quer muita lenha. E morro de medo dele.
Então a cambaxirra voou até o castelo do barão e pediu:
- Barão, por favor, não dê ordem ao capataz
para dar ordem ao lenhador
para derrubar a árvore do galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho.
E o barão respondeu:
- Ah cambaxirra, se eu pudesse...
Mas não é comigo. Estou só cumprindo ordens.
- De quem?
- Do visconde, que é o dono de mais terras e mesmo assim quer muita lenha. E morro de medo dele.
Então a cambaxirra voou até o castelo do visconde e pediu:
- Visconde, por favor, não dê ordem ao barão
para dar ordem ao capataz
para dar ordem ao lenhador
para derrubar a árvore do galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho.
E o visconde respondeu:
- Ah cambaxirra, se eu pudesse...
Mas não é comigo. Estou só cumprindo ordens.
- De quem?
- Do conde, que é o dono de mais terras e mesmo assim quer muita lenha. E morro de medo dele
Então a cambaxirra voou até o castelo do conde e pediu:
- Conde, por favor, não dê ordem ao visconde
para dar ordem ao barão
para dar ordem ao capataz
para dar ordem ao lenhador
para derrubar a árvore do galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho.
E o visconde respondeu:
- Ah cambaxirra, se eu pudesse...
Mas não é comigo. Estou só cumprindo ordens.
- De quem?
- Do marquês, que é o dono de mais terras e mesmo assim quer muita lenha. E morro de medo dele
Então a cambaxirra voou até o castelo do marquês e pediu:
- Marquês, por favor, não dê ordem ao conde
para dar ordem ao visconde
para dar ordem ao barão
para dar ordem ao capataz
para dar ordem ao lenhador
para derrubar a árvore do galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho.
E o visconde respondeu:
- Ah cambaxirra, se eu pudesse...
Mas não é comigo. Estou só cumprindo ordens.
- De quem?
- Do duque, que é o dono de mais terras e mesmo assim quer muita lenha. E morro de medo dele
Então a cambaxirra voou até o castelo do duque e pediu:
- Duque, por favor, não dê ordem ao marquês
para dar ordem ao conde
para dar ordem ao visconde
para dar ordem ao barão
para dar ordem ao capataz
para dar ordem ao lenhador
para derrubar a árvore do galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho.
E o visconde respondeu:
- Ah cambaxirra, se eu pudesse...
Mas não é comigo. Estou só cumprindo ordens.
- De quem?
- Do imperador, que é o dono de mais terras e mesmo assim quer muita lenha. E morro de medo dele
Então a cambaxirra voou até o palácio do imperador e pediu:
- Imperador, por favor, não dê ordem ao duque
para dar ordem ao marquês
para dar ordem ao conde
para dar ordem ao visconde
para dar ordem ao barão
para dar ordem ao capataz
para dar ordem ao lenhador
para derrubar a árvore do galho mais bonito onde estou fazendo meu ninho.
E o imperador respondeu:
- Em primeiro lugar, você devia me chamar de Vossa Majestade. Em segundo, não tinha nada que ir entrando assim pela janela e falando, devia marcar audiência. Em terceiro, eu faço o que bem entendo e não tenho nada que dar satisfação a ninguém. E vou dar uma ordem: saia daqui imediatamente.
Mas a cambaxirra continuou:
- De quem é que o senhor tem medo?
- Vossa Majestade, não se esqueça! Eu não tenho medo de ninguém. E como você não cumpriu minha ordem, vou mandar prendê-la numa gaiola para sempre.
Mas a cambaxirra estava furiosa:
- Prende nada. Primeiro, vão ter que me pegar. E isso não vão conseguir. Mesmo porque eu vou sair por aí e pedir ajuda a todo mundo.
- A todo mundo?
E a cambaxirra, muito esperta, ameaçou:
- É ... a todo mundo junto.
- Ah cambaxirra, não faz isso não.
De todo mundo junto eu tenho medo.
- Então salva a minha árvore.
E o Imperador deu ordem ao duque para
dar ordem ao marquês para
dar ordem ao conde para
dar ordem ao visconde para
dar ordem ao barão para
dar ordem ao capataz para
dar ordem ao lenhador para
não derrubar a árvore de galho mais bonito onde a cambaxirra foi fazer o ninho dela.
Ana Maria Machado