quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O Segredo do Boto

Márcio José Rodrigues – Laguna, SC

 
Uma canoa desgarrada descia a maré vazante em direção ao mar.

Sem um remador que a conduzisse, deslizava suave ao sabor da correnteza.

Levava bem acomodada no fundo, uma criança recém nascida, cuidadosamente enrolada em panos de algodão e pelúcia. O ruído das ondas agitadas pelo vento norte não deixariam que alguém pudesse ouvir o choro desesperado.

Não muito longe, no casebre do pescador Foguinho, a lamparina de querosene ainda não apagara a chama, mal iluminando a pequena peça da cozinha e projetando sombras contra as paredes toscas de tábuas. A corrente de ar filtrada pelas frestas fazia a chama dançar, mudando a tonalidade das imagens mal definidas dos rostos de um casal silencioso e taciturno, que teimava em permanecer fora da cama a horas tardias.

O silêncio desses dos dois personagens escondia um segredo terrível.

Na noite anterior a cena nesse mesmo local, tinha sido muito diferente e conturbada.

A mulher acabara de dar à luz, um menino.

O recém-nascido tinha cabelos negros como o alcatrão, os grandes olhos escuros, a pele morena.

Tudo estaria perfeito, não fossem certos detalhes.

Ora, o apelido que o homem carregava no lugar do nome de batismo, havia recebido pela cor de seus cabelos de fogo, a pele avermelhada salpicada de sardas. A mulher possuía os cabelos ainda mais ruivos. Os filhos, dois pirralhos espertos, tinham bem saído aos pais, com os mesmos cabelos de ferrugem, as mesmas sardas e os olhos mais azuis que o céu do mês de maio.

Não tivesse o próprio pai assistido o parto, cortado ele mesmo o cordão do umbigo a bem medidos cinco dedos de espaço e o amarrado com linha de pesca, diria que o menino teria sido trocado, como coisa de um sortilégio ou feitiço.

– Este menino não parece meu filho!… balbuciou sem jeito.

A mãe nada contestou. Instintivamente, num gesto tão inesperado quanto estranho, estreitou a criança contra o peito, encolhendo-se sobre ela, como a protegê-la de uma já prevista agressão.

O homem implorou por uma explicação.

A mulher encolheu-se ainda mais.

O silêncio constrangedor só fez envenená-lo em suas dúvidas.

A cabeça latejava. O coração ferido ante a expectativa de uma traição, batia desencontrado. Sentimentos de raiva cambiavam com os de tristeza e decepção, enquanto ondas de ciúme e decepção alimentavam uma angústia opressora.

Da mulher não arrancou nenhuma confissão , mesmo diante da faca ainda suja com o sangue do trabalho de parto. A mente do pescador triturava os pensamentos, torturando-o com suspeitas que nenhum homem poderia suportar. Depois ainda viria a humilhação perante os vizinhos e companheiros, o riso disfarçado e a pilhéria no balcão da venda.

Ante o desvairio do homem e uma sombria ameaça contra as crianças, a mulher cedeu.

Mesmo inconsolável, aceitou levar a cabo um plano macabro.

No dia seguinte, entre rezas e lamúrias das velhas carpideiras, uma caixinha com areia foi conduzida ao cemitério da aldeia, simulando o enterro de um natimorto, as crianças levando raminhos de flores do campo.

Passaram-se estações, sucederam-se as temporadas e a faina sem fim das lidas da pesca, mas as noites do casal seriam sempre povoadas de pesadelos.

O remorso é uma dor que só se cura quando a pessoa perdoa a si mesma.

Nos piores momentos, muitas lágrimas para a mulher.

Para o homem, a cachaça.

Alguns anos depois, quando os meninos já eram quase homens feitos, apareceu no pesqueiro, um jovem moreno e forte.

Não possuía canoa nem pertences e ninguém se lembrava já tê-lo visto em um lugar qualquer.

Pescava com habilidade notável e onde andava por aquela barra de rio, sempre havia um grupo de botos por perto. Coisas estranhas que rondavam o jovem pescador levavam a crer que os botos o conheciam e que parecia dirigir-se a eles por meio de sons ininteligíveis.

Por onde pescava sempre havia botos - e tainhas em abundância.

Solitário, só não se esquivava da aproximação dos filhos de Foguinho, que sempre saíam de balaio cheio, enquanto as tarrafas dos outros voltavam vazias.

Ninguém sabia onde dormia ou onde morava. Desaparecia com o anoitecer e se antecipava a todos ao nascer do sol.

A única casa de que se permitia aproximar era a desse pescador.

A mulher costumava observá-lo sem o entender, mas com um sentimento de inexplicáveis ternura e compaixão. Ela já havia percebido em seus olhos, um triste ar de abandono e súplica quando a envolviam com inocência e lhe faziam aflorar sentimentos de mal disfarçada ternura.

Não foi uma vez só, que a quase certeza materna, parecia dizer-lhe que conhecia aquele moço.

Lá fora povo dizia:

– Ele é filho do boto!

E daí, a figura foi se envolvendo cada vez mais em brumas de mistério, até que virasse uma espécie de lenda viva, enriquecida aqui e ali com recortes de imaginação nas rodas de cachaça.

As moças do local espalhavam histórias de um olhar poderoso e irresistível que as deixava enfeitiçadas. Não tardaram a identificá-lo como um mau espírito ou demônio desses povoados açorianos, e logo passou a representar o perigo, o mal personificado saído das artimanhas de alguma bruxa.

E assim, foi:

Um grupo de homens, na calada de uma noite escura, atacou-o de surpresa.

Os demais moradores da aldeia estranharam o súbito desaparecimento, mas acabaram aceitando que ele tivesse ido embora tão misteriosamente quanto havia aparecido um dia.

Só a mulher de Foguinho saía a procurá-lo, mas em suas buscas só encontrou dor de saudade, um sentimento amargo de culpa, que não passaria nunca.

Aquele macabro segredo morreu com aquela gente,

O tempo leva todas as coisas.

Todos eles se foram também.

Só os botos ficaram.

Desde aqueles tempos, nunca mais abandonaram esses lugares e ainda hoje cercam as tainhas para os pescadores de tarrafa do pontal da barra.



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