sábado, 12 de fevereiro de 2022

O SOLDADO E O DIABO

 

Contam que, em outros tempos, há milhares e milhares de anos, quando nada  existia do que hoje existe, viveu em certa cidade um rico fidalgo, o barão de Macário,  tão poderoso e opulento, quão orgulhoso e mau.

Uma tarde, achava-se ele no seu escritório, contemplando avaramente a grande fortuna que acumulara, roubando aos pobres, às viúvas e aos órfãos, emprestando dinheiro a juros elevados, quando, de súbito, se sentiu tocado por um raio de bondade,  até então jamais experimentado pelo seu coração empedernido.

Lembrou-se que já estava velho; e que, com aquela idade, nunca fizera o menor benefício a pessoa alguma, sem ter dado jamais uma única esmola sequer. Arrependeu[1]se, então, do seu passado.

Nessa mesma tarde, Augusto, um infeliz sapateiro, seu vizinho, que vivia na maior pobreza, carregado de filhos, veio bater à porta, suplicando que lhe emprestasse  cem mil-réis, para se ver livre de uma penhora, e poder comprar o material que precisava para os trabalhos de sua profissão.

– Em vez de cem-mil réis, dar-te-ei um conto de réis, Augusto; disse o barão,  com a condição, porém, que, se eu morrer primeiro, você irá vigiar meu túmulo, nas três  primeiras noites depois do meu enterro.

O sapateiro prometeu, acossado como estava pela necessidade, e o fidalgo deu[1]lhe o conto de réis.

Dois meses depois, o barão de Macário morreu; e Augusto, lembrando-se de sua  promessa, como era homem de promessa, foi cumpri-la.

Duas noites passou ele em claro, no cemitério da cidade, cheio de medo, mas sem que ocorresse novidade alguma.

Na terceira e última, dirigia-se para ir velar junto no túmulo, quando avistou um  soldado encostado a um mausoléu.

– Eh! camarada! bradou. Que fazes aí? Não tens medo de estar no cemitério?

– Eu não tenho medo de coisa alguma, respondeu o militar. Vim para aqui, porque não tenho onde pousar esta noite.

Puseram-se ambos a conversar, enquanto o sapateiro contava ao soldado por que motivo ali se achava.

Passou-se o tempo, sem que eles o sentissem, quando o relógio da torre da igreja bateu compassadamente as doze badaladas fúnebres da hora terrível da meia-noite!...

Então, nesse momento, próximo deles surgiu de súbito, sem que soubessem de onde vinha, um homem vestido de vermelho, com os olhos chispando fogo, e cheirando fortemente a enxofre.

Era o diabo, que lhes ordenou:

– Retirem-se daqui, rapazes! A alma deste homem, que foi um grande usurário na  terra, pertence-me, e eu vim buscá-la.

– Senhor vestido de vermelho, disse o soldado, o senhor não é meu superior, nem mesmo um oficial. Não posso, pois, obedecer-lhe; e, assim, digo-lhe que se retire  daqui, pois aqui chegamos primeiro.

O diabo, vendo aquele militar destemido, não quis puxar barulho, e lembrou-se  de comprá-lo, perguntando-lhe quanto queria para se ir embora.

– Aceito o negócio que me propõe, sr. Satanás. Basta que me dê o dinheiro em  ouro, que uma das minhas botas puder conter.

O diabo saiu, e foi pedir emprestado a um judeu seu amigo, que morava naquela  mesma cidade.

Enquanto não vinha, o soldado puxando o rifle, cortou a sola do pé direito, e  colocou-a por cima de um túmulo aberto.

Quando Satanás chegou, vergado ao peso de um saco de ouro, esvaziou-a, peça  por peça, dentro da bota. O dinheiro caía todo na sepultura.

– Olé! disse o capataz do Inferno, esta bota parece-me mágica!

– Vá buscar mais ... mandou o soldado.

Mais de dez sacos foram assim trazidos pelo diabo. As moedas escorregavam pelo cano da bota, e iam cair no túmulo, de modo que a bota jamais se enchia. Satanás,  desesperado, ia trazendo saco por saco. Na ocasião em que carregava o décimo saco, cheio de moedas de ouro, eis que amanheceu de repente. O galo cantou; o sol rompeu; e o sino da igreja bateu alegremente, chamando para a missa.

Satanás deu um berro e desapareceu...

Estava salva a alma do barão de Macário...

O soldado e o sapateiro Augusto repartiram entre si a grande fortuna que o diabo deixara na cova; e foram viver ricos e felizes, empregando uma boa parte do dinheiro em dar esmolas aos pobres.

 

HISTÓRIAS DA AVOZINHA - Figueiredo Pimentel

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