quarta-feira, 16 de março de 2022

História de assombração

 



Mário Neme

Pois não é que eles vinham vindo pela estrada fria, Nhô Be e Chico, dois homens. Vinham vindo pelo estradão sem fim, naquela noite amarga de escura, nem uma estrela no céu, nenhuma claridade, tudo negro, tudo medonho. Era quase meia-noite e eles vinham vindo, só com o facão na cintura, voltando pro rancho.

Nisso estavam chegando perto da casa do defunto Miguelangelo, uma tapera, abandonada, que de noite apareciam lá não sei quantas almas do outro mundo. Muita gente já tinha visto as tais almas cantando, tinha dado tiro nelas, mas a bala não pegava. Uma tocava viola, uma viola chorosa e bem afinada, mas ninguém via a viola. Coisa misteriosa. Era mesmo daquelas assombrações que a gente respeita e passa longe, evita elas, mas, Nhô Be não acreditava "nessas bobagens não".

— Isso de assombração é besteira, Chico.

— Se é, compadre.

— Pois eu não acredito nisso e acho que é até pecado acreditar. O pessoal lá em casa é meio besta, acredita, isto é, a mulherada que é meio besta.

— Em casa também, compadre.

—Negadinha boba, Chico. Donde se viu?! Eu nunca tive medo dessas invenções.

— Nem eu, Nhô Be, nem eu.

Eu estava orgulhoso de ver dois bravos com essa coragem formidável, isso sim, era gente pra pôr num conto, até dava gosto lidar com eles. Precisava ver quando, daí a pouco, desabou uma tempestade de acabar o mundo, daquelas mesmo de lavar a terra e a gente não se agüentar em pé debaixo dela.

Chuáaa, e a aguaceira caía que não era vida! Então, os dois homens estavam bem pertinho da casa mal-assombrada, onde tinham matado o defunto Miguelangelo. Foi uma barbaridade aquela morte, quebraram os dentes dele, quebraram os dedos dos pés e das mãos e depois deixaram o velho ir morrendo devagarinho, naquele sofrimento, que só aquilo merecia o céu.

Estavam mesmo na frente da casa, e a chuva de não se agüentar em­
baixo. Nhô Be falou para o companheiro:                                                           

— Acho que é melhor a gente entrar na casa e esperar passar a chuva, Chico.

— Mas é que essa casa tem uma fama desgraçada, compadre...

— O que tem isso, Chico? Pois a gente não tem medo de assombração.

— Ah! É mesmo, compadre! Então vamos.

E foram. Entraram sem abrir a porta, porque não tinha porta mais, nem j anela.

Mas entraram com muita precaução, espiaram pra dentro, foram andando de manso, chegaram no centro da casa, juntaram uns gravetos, e tal, e fizeram fogo.

O fogo eles disseram, lá entre eles, que era para esquentar o corpo, mas eu desconfio que era pra espantar as almas do outro mundo. Porque, francamente, eles não estavam muito firmes, não. Coragem eles tinham e bastante, mas, numa hora dessas, num lugar assim de má fama, meia-noite, aquela chuva torvando, aquela casa escangalhada, a gente fica mesmo meio esquerda. Mas eles estavam ali, firmes.

De repente, um barulhinho esquisito, que nem gente que pisa disfarçado. Os dois estavam agachados na frente do foguinho, nessa hora arregalaram os olhos, ficaram assustando pro lado do barulho, que era no vão da porta.

Pra dizer a verdade, estavam com os olhos deste tamanho, olhavam um pró outro e depois pra porta. Outro barulhinho mais perto e apareceu

Uma sombra se mexendo na porta. Nhô Be puxou a faca da cintura. Chico segurou a "pernambucana" e ficou pronto pra enfrentar o bicho. Mas, porém, o bicho não era "aquele bicho". Era um franguinho. O pobre vi­nha todo molhado, pingando chuva, querendo encontrar um cantinho pra se esquentar. Aquilo foi um contentamento prós dois, um alívio pra eles, até para mim que não tinha nada com o caso. Não é que eles tivessem medo, mas, numa hora daquelas, aquele barulho na porta, um negócio assim que vinha agachado prô lado deles, era mesmo pra gente arregalar os olhos e parar a suspiração.

— Está vendo, Chico, se a gente tivesse medo podia até morrer de susto agora, pois é só um franguinho.

— Pois é, compadre, um franguinho, um franguinho, compadre...

O franguinho veio vindo, chegou perto do fogo, chacoalhou as asas, esticou o pescoço pra cima, fez assim uma carinha de gente e falou prós dois com voz de trovão:

— PUXA VIDA, COMO ESTÁ CHOVENDO, NÃO?



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