Um dia vi na casa de nossa vizinha, Dona Orozina do Seu Maurício,
um pinteiro feito de bambu e achei que eu também seria capaz de fazer um igual.
O pinteiro era um pequeno cercado, mais ou menos de um metro quadrado, feito
de bambus fincados na terra e separados numa distância de uns cinco
centímetros. A galinha ficava presa dentro do cercado e os pintos podiam sair e
entrar livremente, ciscando o chão sem prejuízo da horta.
Falei ao Zé do Seu Maurício — um menino mais velho do que eu — que
estava com vontade de fazer um pinteiro igual ao deles, no quintal da minha
casa, pois mamãe tinha uma galinha, cheia de pintinhos, e a coitada passava o
dia inteiro amarrada por um pé, para não ciscar a horta.
O Zé, que era um menino muito corajoso, aprovou logo a ideia.
Resolvemos tirar os bambus na beirada do rio, na saída da cidade que levava à
fazenda do João Silva. Chegando lá, porém, não deu pra gente cortar os bambus,
por causa dos elefantes.
Tinha aparecido um circo na cidade e o domador estava dando de
beber e comer aos bichos, sob as vistas de grande parte da população.
Resolvemos, então, andar um pouco mais e ir a um bambuzal que
separava um pasto de uma lavoura de café. Mais uns dez ou quinze minutos a pé.
E lá fomos os dois, cada um segurando na mão a sua foice sem cabo, pois era
assim que os adultos faziam quando iam cortar bambu.
Depois de
cortadas umas três ou quatro varas era a hora de tirar as folhas e os pequenos galhos. Segurei o primeiro bambu com a mão
esquerda e com a direita armei a pesada e bem
amolada foice. Por falta de sorte — ou por não ter
observado bem a técnica de tirar bambu —, a foice cortou o primeiro galho e a
ponta do meu dedo indicador.
O pedaço do
dedo voou longe e eu rápido atrás dele, tudo num susto só. Minha intenção era pegar a pontinha do dedo e levar
correndo pra mamãe colar no lugar. Uma galinha, que estava
ciscando por ali, foi mais esperta do que eu e
engoliu o pedaço do meu dedo. Aí saí correndo atrás dela, mas quando vi o que tinha sobrado do meu dedo esguichando sangue, com os
nervinhos pulando como se quisessem sair da
carne, mudei de direção e disparei pra casa.
No caminho,
a cabeça não parou de funcionar: ali ia correndo um menino que tinha ficado aleijado. E se eu tinha ficado
aleijado, ia ter que pedir esmola, pois todo
aleijado pedia e, se eu tinha que pedir esmolas para viver, estava perdido. Cheguei em casa desesperado.
Atrás de
mim vinha correndo o Zé do Seu Maurício, anunciando pra todo mundo a desgraça: "O Ilcinho cortou o dedo fora e a
galinha comeu" — dizia ele. — "Não vai ter jeito de
consertar."
Cheguei
todo ensanguentado, gritando por mamãe, mas quem eu encontrei primeiro foi meu
pai.
Ele foi
rápido: pegou um vidro de iodo e derramou todo no meu dedo. Senti a maior dor de toda a minha vida! Berrei com todas
as minhas forças!
Minha mãe
apareceu, passou um pito no meu pai, assumiu a enfermagem. Pegou teia de aranha, sapecou no fogo e botou sobre o
corte para estancar o sangue. Enquanto ia fazendo o
curativo, ia dizendo para mim:
— Antes de a
gente ir lá na farmácia, pra fazer um curativo direito, mamãe vai procurar essa galinha, vai matar ela e tirar do
papo o pedacinho do seu dedo e colar no lugar. Aí sua
mão fica igualzinha à outra, sem defeito algum. Mas,
vai doer um bocado na hora de colar! Acho melhor até você ficar sem a pontinha do seu dedo, meu filho, fica mais
bonitinho. Nunca mais precisa limpar
esta unha e ter que cortá-la todas as semanas. Olha só o Zé do Seu Maurício: ele está cheio de inveja, pois é mais velho do
que você e a professora briga com ele, todos os dias,
porque não limpa direito as unhas.
Depois foi
a vez do farmacêutico, que me fez um discurso exatamente igual ao da mamãe, com toda a paciência. Ele era pai de outro
menino.
Wilson
Martins da Silva.
_ Memórias
de um menino de negócios,
São Paulo, Melhoramentos, 1982.
São Paulo, Melhoramentos, 1982.