sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A galinha e o dedo


          

Um dia vi na casa de nossa vizinha, Dona Orozina do Seu Maurício, um pinteiro feito de bambu e achei que eu também seria capaz de fazer um igual. O pinteiro era um pequeno cercado, mais ou menos de um metro quadra­do, feito de bambus fincados na terra e sepa­rados numa distância de uns cinco centímetros. A galinha ficava presa dentro do cercado e os pintos podiam sair e entrar livremente, ciscando o chão sem prejuízo da horta.
Falei ao Zé do Seu Maurício — um menino mais velho do que eu — que estava com vontade de fazer um pinteiro igual ao deles, no quintal da minha casa, pois mamãe tinha uma galinha, cheia de pintinhos, e a coitada passava o dia inteiro amarrada por um pé, para não ciscar a horta.
O Zé, que era um menino muito corajoso, aprovou logo a ideia. Resolve­mos tirar os bambus na beirada do rio, na saída da cidade que levava à fazenda do João Silva. Chegando lá, porém, não deu pra gente cortar os bambus, por causa dos elefantes.
Tinha aparecido um circo na cidade e o domador estava dando de beber e comer aos bichos, sob as vistas de grande parte da população.
Resolvemos, então, andar um pouco mais e ir a um bambuzal que separa­va um pasto de uma lavoura de café. Mais uns dez ou quinze minutos a pé. E lá fomos os dois, cada um segurando na mão a sua foice sem cabo, pois era assim que os adultos faziam quando iam cortar bambu.
Depois de cortadas umas três ou quatro varas era a hora de tirar as folhas e os pequenos galhos. Segurei o primeiro bambu com a mão esquerda e com a direita armei a pesada e bem amolada foice. Por falta de sorte — ou por não ter observado bem a técnica de tirar bambu —, a foice cortou o primeiro galho e a ponta do meu dedo indicador.
O pedaço do dedo voou longe e eu rápido atrás dele, tudo num susto só. Minha intenção era pegar a pontinha do dedo e levar correndo pra mamãe colar no lugar. Uma galinha, que estava ciscando por ali, foi mais esperta do que eu e engoliu o pedaço do meu dedo. Aí saí correndo atrás dela, mas quando vi o que tinha sobrado do meu dedo esguichando sangue, com os nervinhos pulan­do como se quisessem sair da carne, mudei de direção e disparei pra casa.
No caminho, a cabeça não parou de funcionar: ali ia correndo um menino que tinha ficado aleijado. E se eu tinha ficado aleijado, ia ter que pedir esmola, pois todo aleijado pedia e, se eu tinha que pedir esmolas para viver, estava perdido. Cheguei em casa desesperado.
Atrás de mim vinha correndo o Zé do Seu Maurício, anunciando pra todo mundo a desgraça: "O Ilcinho cortou o dedo fora e a galinha comeu" — dizia ele. — "Não vai ter jeito de consertar."
Cheguei todo ensanguentado, gritando por mamãe, mas quem eu encon­trei primeiro foi meu pai.
Ele foi rápido: pegou um vidro de iodo e derramou todo no meu dedo. Senti a maior dor de toda a minha vida! Berrei com todas as minhas forças!
Minha mãe apareceu, passou um pito no meu pai, assumiu a enfermagem. Pegou teia de aranha, sapecou no fogo e botou sobre o corte para estancar o sangue. Enquanto ia fazendo o curativo, ia dizendo para mim:
— Antes de a gente ir lá na farmácia, pra fazer um curativo direito, ma­mãe vai procurar essa galinha, vai matar ela e tirar do papo o pedacinho do seu dedo e colar no lugar. Aí sua mão fica igualzinha à outra, sem defeito al­gum. Mas, vai doer um bocado na hora de colar! Acho melhor até você ficar sem a pontinha do seu dedo, meu filho, fica mais bonitinho. Nunca mais preci­sa limpar esta unha e ter que cortá-la todas as semanas. Olha só o Zé do Seu Maurício: ele está cheio de inveja, pois é mais velho do que você e a professo­ra briga com ele, todos os dias, porque não limpa direito as unhas.
Depois foi a vez do farmacêutico, que me fez um discurso exatamente igual ao da mamãe, com toda a paciência. Ele era pai de outro menino.
Wilson Martins da Silva.
_                                                      Memórias de um menino de negócios,
                                                                                       São Paulo, Melhoramentos, 1982.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Sempre não


Um cavaleiro, casado com uma dama nobre e formosa, teve de ir fazer uma longa jornada: receando acontecesse algum caso desagradável enquanto estivesse ausente, fez com que a mulher lhe prometesse que enquanto ele estivesse fora de casa diria a tudo: – Não.
Assim pensava o cavaleiro que resguardaria o seu castelo do atrevimento dos pajens ou de qualquer aventureiro que por ali passasse.
O cavaleiro já havia muito que se demorava na corte, e a mulher aborrecida na solidão do castelo não tinha outra distração senão passar as tardes a olhar para longe, da torre do miradouro. Um dia passou um cavaleiro, todo galante, e cumprimentou a dama: ela fez-lhe a sua mesura. O cavaleiro viu-a tão formosa, que sentiu logo ali uma grande paixão, e disse:
 – Senhora de toda a formosura! Consentis que descanse esta noite no vosso solar? Ela respondeu:
– Não!
O cavaleiro ficou um pouco admirado da secura daquele não, e continuou: – Pois quereis que seja comido dos lobos ao atravessar a serra? Ela respondeu:
– Não.
Mais pasmado ficou o cavaleiro com aquela mudança, e insistiu: – E quereis que vá cair nas mãos dos salteadores ao passar pela floresta? Ela respondeu:
– Não.
Começou o cavaleiro a compreender que aquele Não seria talvez sermão encomendado, e virou as suas perguntas:
– Então me fechais o vosso castelo? Ela respondeu:
– Não.
– Recusais que pernoite aqui?
– Não.
Diante destas respostas o cavaleiro entrou no castelo e foi conversar com a dama e a tudo o que lhe dizia ela foi sempre respondendo – Não. Quando no fim do serão se despediam para se recolherem a suas câmaras, disse o cavaleiro:
– Consentis que eu fique longe de vós? Ela respondeu:
– Não.
 – E que me retire do vosso quarto?
 – Não.
O cavaleiro partiu, e chegou à corte, onde estavam muitos fidalgos conversando ao braseiro, e contando as suas aventuras. Coube a vez ao que tinha chegado, e contou a história do Não; mas quando ia já a contar a modo como se metera na cama da castelã, o marido já sem ter mão em si, perguntou agoniado:
 – Mas onde foi isso cavaleiro?
O outro percebeu a aflição do marido e continuou sereno:
– Ora, quando ia eu a entrar para o quarto da dama, tropeço no tapete, sinto um grande solavanco, e acordo! Fiquei desesperado em interromper-se um sonho tão lindo.
O marido respirou aliviado, mas de todas as histórias foi aquela a mais formidável.
                                                    
 (Teófilo Braga – Conto tradicional português - enviado por maria Cândida Figueira)