Marina
Colasanti
Levou o manequim de madeira à festa porque não tinha companhia e não queria ir
sozinho.
Gravata bordeaux, seda. Camisa pregueada, cambraia. Terno riscado, lã.
Tudo do bom. Suas melhores roupas na madeira bem talhada, bem lixada, bem pintada,
melhor corpo. Só as meias um pouco grossas, o que porém se denunciaria apenas
se o manequim cruzasse as pernas. Para o nariz firmemente obstruído, um lenço
no bolsinho.
No relógio de ouro do pulso torneado, a festa já tinha começado há algum tempo.
Sorridentes, os donos da casa se declararam encantados por ter ele trazido um
amigo.
— Os amigos dos nossos amigos são nossos amigos — disseram saboreando a
generosidade da sua atitude. E o apresentaram a outros convidados, amigos e
amigos de nossos amigos. Todos exibiram os dentes em amável sorriso.
Recebeu o copo de uísque, sua senha. E foi colocado no canto esquerdo da sala,
entre a porta e a cômoda inglesa, onde mais se harmonizaria com a decoração.
A meia hilaridade pintada com tinta esmalte e reforçada com verniz náutico
exortava outras hilaridades a se manterem constantes, embora nenhuma alcançasse
idêntico brilho. Abriam-se os transitórios vizinhos em amenidades que o
compreensivo calar-se do outro logo transformava
A própria dona da casa ocupou-se dele na refrega de gentilezas. Trocou-lhe o
copo ainda cheio e suado por outro de puras pedras e âmbar. Atirou-se à
conversa sem preocupações de tema, cuidando apenas de mantê-lo entretido. Do
que logo se arrependeu, naufragando na ironia do sorriso que lhe era oferecido
de perfil. A necessidade de assunto mais profundo levou-a à única notícia lida
nos últimos meses. E nela avançou estimulada pelo silêncio do outro, logo úmida
de felicidade frente a alguém que finalmente não a interrompia. No mais
frondoso do relato o marido, entre convivas, a exigiu com um sinal. Afastou-se
prometendo voltar.
O brilho de uma calvície abandonou o centro da sala e coruscou a seu lado,
derramando-lhe sobre o ombro confissões impudicas, relato de farta atividade
extraconjugal. Sem obter comentários, sequer um aceno, o senhor louvou
intimamente a discrição, achando-a, porém, algo excessiva entre homens. Homens
menos excessivos aguardavam em outros cantos da sala a repetição de suas
histórias.
Não acendeu o cigarro de uma dama e esta ofendeu-se, já não havia cavalheiros
como antigamente. Não acendeu o cigarro de outra dama e esta encantou-se, sabia
bem o que se esconde atrás de certo cavalheirismo de antigamente. Os cinzeiros
acolheram os cigarros sem uso.
Um cavalheiro sentiu-se agredido pelo seu desprezo. Um outro pela sua
superioridade. Um doutor enalteceu-lhe a modéstia. Um senhor acusou-lhe a
empáfia. E o jovem que o segurou pelo braço surpreendeu-se com sua rígida força
viril.
Nenhum suor na testa. Nenhum tremor na mão. Sequer uma ponta de tédio.
Imperturbável, o manequim de madeira varava a festa em que os outros aos poucos
se descompunham.
Já não eram como tinham chegado. As mechas escapavam, amoleciam os colarinhos,
secreções escorriam nas peles pegajosas. Só os sorrisos se mantinham, agora
descorados.
No relógio torneado do pulso rijo a festa estava em tempo de acabar.
As mulheres recolhiam as bolsas com discrição. Os amigos, os amigos dos amigos,
os novos amigos dos velhos amigos deslizavam porta afora.
Mais tarde, a dona da casa, tirando a maquilagem na paz final do banheiro,
dedos no pote de creme, comentava a festa com o marido.
— Gostei — concluiu alastrando preto e vermelho no rosto em nova máscara —,
gostei mesmo daquele convidado, aquele atencioso, de terno riscado, aquele,
como é mesmo o nome?
Marina Colasanti (1938)
nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no
Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias
infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de
Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em amor; Contos de amor rasgados;
Aqui entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zooilógico, A morada do ser, A
nova mulher (que vendeu mais de 100.000 exemplares), Mulher daqui pra frente, O
leopardo é um animal delicado, Gargantas abertas e os escritos para crianças
Uma idéia toda azul e Doze reis e a moça do labirinto de vento. Colabora,
também, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e
palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de
Sant'Anna.
O texto acima foi extraído do livro "O leopardo é um animal
delicado", Editora Rocco — Rio de Janeiro, 1998, pág. 131.
