domingo, 28 de agosto de 2011

Lobisomem





— Por um feliz acaso — continuou Niceros —, meu amo tinha ido a Cápua vender alguns ouropéis. Aproveitando-me dessa ocasião, persuadi nosso hospedeiro a me acompanhar até uma distância de cinco milhas dali. Ele era um soldado, bravo como Plutão. Pusemo-nos a caminho ao primeiro cantar do galo (a lua brilhava, e via-se tudo claro como em pleno meio-dia).
A um bom pedaço do caminho, achamo-nos entre túmulos. E, de repente, eis que meu homem se põe a conjurar os astros. Eu me sentei, cantarolei um pouco, e pus-me a contar as estrelas. Depois, voltando-me para meu acompanhante, vi que ele se despojava de todas as suas vestes, deitando-as à beira da estrada. Morto de medo, permaneci imóvel, como um cadáver. Imaginai meu pavor, então, quando ele se pôs a urinar ao redor de suas roupas, e no mesmo instante se transformou num lobo. Não penseis que estou brincando; eu não mentiria nem por todo o ouro do mundo.
Mas onde era que eu estava? Ah, sim. Quando se transformou em lobo, ele começou a uivar e logo fugiu para a floresta. A princípio, eu não sabia nem onde me encontrava. Depois, aproximei-me de suas vestes, para levá-las: haviam-se transformado em pedras. Se algum dia um homem esteve para morrer de medo, esse homem fui eu.
Contudo, tive a coragem de desembainhar minha espada e fender o ar com toda a força, para afastar os maus espíritos ao longo do caminho, até a casa de minha amante. Assim que transpus a soleira da casa, por pouco não entreguei a alma: um suor frio me escorria pêlos membros, meus olhos estavam mortos, e foi preciso um esforço desesperado para me fazer voltar a mim. Minha adorada Melissa não escondeu seu espanto ao me ver chegar a uma hora tão avançada.
"Se houvesse chegado mais cedo", disse-me, "poderias ter-nos prestado uma grande ajuda. Um lobo penetrou no cercado e matou todos os nossos porcos: foi uma verdadeira carni¬ficina. Entretanto, embora houvesse escapado, não teve tempo de comemorar seu feito, porque um de nossos criados lhe atravessou a lança na goela." Ouvindo isso, deixo a vós julgar se abri desmesuradamente os olhos. E, como o dia já vinha surgindo, corri depressa para nossa casa, como um mercador perseguido por ladrões.
Ao chegar ao local onde havia deixado as vestes transformadas em pedra, vi apenas sangue. Entrando em casa, encontrei meu soldado estendido no leito: sangrava como um boi, e um médico lhe passava ataduras em torno do pescoço. Reconheci, então, que ele era um lobisomem, e, a partir daquele dia, preferi morrer de pancadas a comer um pedaço de pão com ele.
Agora, deixo a quem não acreditar em mim a liberdade de pensar o que queira. Mas, se minto, que os génios que velam por vós me esmaguem com sua cólera!



Satiricon, Petrônio, Ed. Abril

Um comentário:

Pati Alves disse...

Fiquei com medo no meio do conto. Muito bom.